Poesia

História de minhas lembranças


“Meu anjo, meu tudo, minha alma gêmea... por mais que você me ame eu te amo ainda mais, minha amada imortal”.
Assim começa a história de minhas lembranças. Também as tenho, assim como você. Foi à noite. Estava sem sono e preferi levantar e procurar algo que pudesse me distrair até conseguir adormecer. Talvez seja interessante ressaltar que a frase acima está entre aspas porque, obviamente, trata-se de uma citação. É o trecho de uma das tantas cartas de amor escritas por um dos grandes gênio da música clássica, Ludwig Van Beethoven, à mulher que foi seu grande amor, Johanna Beethoven, esposa de seu irmão e mãe de seu único filho.
É possível sentir que nossas memórias estão entrelaçadas a casos passados de pessoas alheias à nossa própria existência? Sim. Naquela madrugada descobri isso.
Levantei sem sono e fui à cozinha. Enquanto bebia água observava os móveis, a disposição das cadeiras, a bagunça nas estantes empoeiradas e quebradas. Nossa, como eu era capaz de gastar tanto dinheiro em livros e não comprar uma estante nova? Aquela ainda serviria para sustentar minha compulsão descontrolada de comprar livros usados. Sim, manuseados. Livros novos não tem amor, eles vem lacrados da loja ou livraria, chegam às nossas mãos sem paixão. Ninguém nunca os folheou antes, ninguém nunca sofreu ou amou abrindo suas páginas. Absolutamente nada nas folhas brancas, intactas, completamente limpas, tão higiênicas que não há sequer possibilidade de acreditar que, um dia, alguém poderá adoecer ao folhear páginas gastas e emboloradas. Livros novos não têm dor ou sorrisos, queixas ou lágrimas, nem bons momentos a ser compartilhados. Por isso só comprava livros usados, desde a escola. Eu dizia: Pai, compra meus livros no sebo! Ah como era bom estudar ciências imaginando que alguém aprendera da mesma forma que eu!
Ali estava eu, de camisola preta, cabelos desgrenhados, copo de água ainda pela metade e olhar perdido naquela estante velha repleta de novos livros velhos.
Adorava olhar para eles e sentir o pulsar dos momentos de suas aquisições. Lembro de cada um deles, um por um. O Rubem Fonseca que comprei pelo título, título esse que sempre achei belíssimo: “Vastas emoções pensamentos imperfeitos”. Só não é mais belo que os “Cem anos de solidão” que comprei novo porque, infelizmente nunca consegui encontrá-lo usado.
E permaneci ali minutos a fio, olhando e lembrando, lembrando e pensando, pensando e sonhando. Sempre amei aquela estante e um dos meus sonhos juvenis era vê-la repleta de todos os livros que já li, cada um deles, até mesmo os que não lembro mais.
A água finalmente acabou. No último gole apaguei a luz e volvi à sala. Liguei a TV. Os jornais da meia noite já haviam terminado, a bela Ana Paula Padrão não me informava as notícias do dia, já tinha ido embora. No lugar dela o que invadia a tela era uma sinistra marcha fúnebre, com uma voz ao fundo recitando My immortal belloved. Era esse o título do filme.
Aquilo me prendeu, capturou minha atenção como os olhos de uma criança hipnotizada pelo brinquedo na vitrina. Uma marcha fúnebre do século XIX quase sem choro, acompanhada pelo recital de uma triste carta de amor, um amor mal resolvido, mal entendido, que existiu sem existir. Daqueles que amarguram depois do fim. De mel à fel.
Tive vontade de amar assim desde aquela noite. Então comecei a imaginar como seria estar apaixonada, verdadeiramente apaixonada, escrevendo cartas de amor e fazendo promessas que eu saberia não poder cumprir. Cinicamente apaixonada.
Contava 16 anos na noite em que começaram minhas lembranças. Antes disso apenas lapsos de coisas passadas.
Minha infância fica em outra parte da memória, uma parte que prefiro explorar depois. As emotivas começaram nessa noite. For Elise embala-me o desvario dramático dos acontecimentos de Beethoven e os não acontecimentos não vividos por mim.
Ouvir essa sinfonia me faz lembrar de coisas que nunca aconteceram, mas que para mim são tão nítidas que chegam a ser reais.

Denise Veras Denise Veras Autor
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