Num abismo escuro, em que por sobre o espírito se rebelam a pairar as frias águas do nada, mais que um choro, nasce um pálido canto de dor por tudo o que foi, mas, sobretudo pelo que não foi.
Um canto de graça, sem nenhuma paz, nenhum lamento, que calado soluça, mas ri.
Porque a maldição de um fim atesta um antes bendito, como o choro pela morte também celebra a vida que se desfez.
Se o agora não se reveste de ventura é que o ontem chegou envolto em bênçãos talvez descabidas.
E se amaldiçoo o que hoje te leva, é porque é bendito tudo o que te pôs na minha estrada.
Então, bendito!:
Bendito o dia em que te vi por último e por primeiro.
Bendito o providencial acaso de terem nascido tu e aqueles de quem descendes.
Benditos os passos com que chegaste e os olhares com que me olhaste e bendita a timidez e o atrevimento do primeiro riso na calçada de chão.
Bendito cada milésimo e minuto e os dias - e, céus!
Como são poucos os dias que foram nossos!
Sim, bendito cada acorde que cantamos e as cordas dedilhadas e cada toque e arrepio e cada palavra que dissemos e as que silenciamos.
Bendito o medo e o desejo que nos moveram, o escuro e a luz que nos cobriram, os pecados, a lei e o perdão.
E se algum dedo justo nos apontou, bendita a sentença e a pena que me não tiver condenado à maldição dessa hora.
E se é para o Bem que se elevam as vagas negras desse instante sombrio, que se apresse o sol em deitar luz sobre essa frágil verdade.
Mas talvez já se me vá, para além das forçar e dos olhos, o crer nalgum Bem possível fora de todo o revés deste momento maldito.