Poesia

CARPIDARIUM I-X

I

As batidas do compasso
Antes da partida de Ítaca
Infinitas possibilidades de “eus”
Que nunca desatracaram do cais

A pura seleção do acaso
Que escolhe os mais fortes
À batalha em águas estranhas
Onde ao meio-dia fenecem fantasias

Com tudo o que preciso
Em meu sangue herdado
Carta náutica de mim mesmo
Basta a bagagem em fluxo



II

Tenho medo das águas marítimas
Tenho medo do horizonte
À noite a água do mar
Converte-se em prata liquida

Meu choro estridente
Rompe as ondas e vejo luz
Desenrola-se um mundo de futuros
Incertos por todos os lados

Percebo-me vivo
Com a maresia que me entranha
E a vida dói pela primeira vez
Simplesmente por eu existir



III

Tatuaram minhas mãos
Astrolábios imprecisos
Com cartas marcadas e dados
Viciados jogam a vida

E do que era novo e estranho
Verteu-se conhecido e rotineiro
E do que era magia e encanto
Fez-se ciência e conhecimento

Em poucos anos
Não se via mais beleza clara
Apenas objetivos incertos
Ao alternar de passos condicionados



IV

Descobri-me louco e previsível
Inconforme a vida comum
Paradoxal ante o porto estige
Onde me esperava Caronte

Sentado as areias troianas
Vejo o horizonte de onde parti agora
Sei que a duvida dói mais que verdade e que
A vida é uma eterna odisséia sem horizontes

Troia não é o apogeu
Assim como Ítaca ao longe não o é
Simples e puramente
Porque apogeu algum existe



V

E aquele que faz a travessia
Há séculos já cansado
Vender-me-ia o seu o barco
Se um ébolo diferente eu o desse

Abri a minha boca
A cuspi-lhe minha dor errante
Escondida em tempos sublinguais
Perfídia puro presente de grego

E o barqueiro agora boticário
Maravilhava-se das substancias possíveis
No veneno morrer aos poucos
Sendo humano perecível e terreno


VI

Foram poucos dias de calmaria
Antes de caronte perceber seu engano
Enraivecido arrancou-me os remos
Com denodo chutou o barco a mar aberto

A deriva longe do porto da solidão
Deitei a contar luminares
Mareado descobri a oculta extensão
Sofrimento do mundo - o mar

Reconheço meu destino inevitável
Deixarei as ondas me levarem
Serei eu mesmo de hoje em diante
E que pereça quem me ache estranho


VII

Léguas e léguas ao acaso
Contemplando o tédio de infinitos
Reflexos de espelhos sobrepostos
Minha iris e a solução salina

E da imagem brotou espuma
E nos olhos negros refletiram
Os verdes da pálida princesa Iza
Que do seu vôo de sereia repousava

E seus olhos narraram-me
O mais belo conto de fadas
Enquanto eu me mantinha preso
O mastro pueril da credulidade



VIII

Sabes tu ó podre ser sonhador
Que te amo mais que outros nautas
Sonhei por toda existência minha contigo
E eu bebia cada gota de absinto

Que manava das mentiras de Iza
A esperança vinha-me a face
Era o rubor nefasto e profundo
A torpe hipnose das sereias

Prometendo mudar meu destino
O inverno soprou em minha alma
Eu era mero pássaro aturdido
Pelo encantamento da serpente



IX

Por décadas vi embarcações
Perderem-se ao canto de meus algozes
Aos pés da estatua que eu era
Repartiam seus despojos

A madrugada a luz de duas esmeraldas
Cintilavam nas águas era a princesa
Que emergia do seu mundo oculto
Para polir seu troféu calcificado

Na ânsia de me possuir por inteiro
Cometeu o erro da impaciência
Tocou com seus dedos minha boca
E num frenesi voluptuoso me beijou



X

O veneno de minha língua
Fermentado com palavras loucas
De agonia ainda não ditas
Logo degenerou sua mente lúcida

E do verde só viu-se carmesim
Apodrecendo suas asas
Caíram das costas em
Pose fetal com mãos nos olhos

Cegos por lagrimas de sangue
Soluços de uma sereia que chora
Condenada a ter alma humana
Abrem-se as portas do tártaro







Rey Mendes Rey Mendes Autor
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