Poesia

A terra dos carambolos de pescoço vermelho

Há aqueles dias em que a bruma parece querer se indispor com o mar e nas areias das praias, sequiosas de esperança, almas perdidas são castigadas pelas marés de frustração. Sob um sol ofuscado pelas neblinas de incerteza, elas padecem; muitas resolvem seguir nuvens amantes de vendaval.

Talvez tenha sido numa dessas manhãs que Cotoco fez viagem contrária a dos grandes navegantes: cortou o cordão umbilical, buscou outros quintais, e foi morar em meio a outros vendavais...

Hodiernamente, muitas almas perdidas perambulam no verde e no asfalto das nossas cidades “mais charmosas”; porém, tão levianamente ofuscadas pelo odor dos bueiros que escondem as nojeiras das desigualdades sociais. Depois das chuvas, no desgosto do gosto acre de uma canção fúnebre à esses espectros errantes, esgotos exalam odores de fezes, urina e vômitos anti-sociais; tudo muito “iguais”. No asfalto, desfilam segregações que originam tais excreções: econômicas, religiosas, étnicas, culturais...

Em meio a essa sociedade pútrida e fétida, bêbados derramam seus prantos. A lamúria da morte da dignidade é comemorada com a droga convencional; droga insaciável por almas errantes. A mídia faz apologia à troca de números etílicos: “Uma de 51 por duas de 21!”. Enquanto alguém ganha nessa permuta, milhares de corpos perdem alma e dignidade antes dos vinte e não mais que aos cinqüenta anos etílicos.

Cotoco acostumou-se ao nome. Um pedaço de vida sem um pedaço de carne. Depois de ter tomado todas as doses do desespero, perdeu parte de um dos braços em acidente de bicicleta. Dorme sempre com o lado inteiro do corpo no cimento silencioso. O chapéu ele coloca sobre os pés, diz enganar as muriçocas: “Vão todas pra lá, pensando ser minha cabeça.”

Perdido na vida e mendigando sobrevivência, certa vez amanheceu deitado num banco de praça, distante da sua praia. A cabeça descansando sobre velha mochila enquanto a alma contemplava, acima da copa das árvores, o céu acinzentado de um amanhecer diferente. Rostos estranhos, cama dura! Colchões de pedra lotados sob neblina e sol causticante.

Durante muito tempo, fez da praça morada e ali criou “A Terra dos Carambolos de Pescoço Vermelho”. Passava o dia na captura; batizava os bichinhos com nomes das lembranças de infância e depois os soltava na grama. Em um dia sem chuva, quente - ar fúnebre exalando nas manhãs de fogo -, Cotoco acorda sobressaltado: seu mundo sendo invadido por estranhas pessoas; sorridentes e bem vestidas. Pranchetas para anotações, máquinas fotográficas de prontidão; ansiedades por desvendar mistérios. Diziam ser empregados do governo e procuravam catalogar misteriosas anomalias do meio social.

Entre os curiosos e ávidos de cumprimento dos deveres, a nenhum interessava a vida de Cotoco; queriam apenas conhecer aquela anomalia da natureza. A multidão se aglomerando em volta, querendo ver tais aberrações. A beata se benzendo, temente a Deus e ao diabo; o protestante anunciando o fim do mundo; os imberbes pseudo estudantes de bancos de praça fazendo teorias teens; o homem de bem – aposentado -, dopado de “Viagra”, incentivando a prostituta a caçar outro velho carambolo... A imprensa com o boné 51!

Trouxeram menino com baladeira; o tiro foi certeiro. O carambolo caiu esparramado no passeio, sangrando pelos ouvidos. Na face de Cotoco escorregou uma lágrima com gosto de álcool; ele chorou baixinho. Pegou a tala de palmeira com laço, quebrou e jogou fora. Abriu a mochila e falou entre sussurros: “Vai embora Godofredo, tem homem mau aqui.” Arrancou a fitinha vermelha do pescoço do animal e o soltou entre as folhagens molhadas pela neblina - resquícios das marés de terras distantes.

O mistério acabou. Cotoco sumiu, seguiu outras nuvens e foi acampar em outras paragens. Quem sabe não tenha voltado para a bruma do seu mar. O mar guarda segredos de partidas e vindas nas suas colunas de dor e saudade, enquanto navios errantes esperam mudanças sociais para aportar.

Kal Angelus Kal Angelus Autor
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