Poesia

Canudos

Canudos

“A alma voa valente
mesmo o corpo de joelhos
sempre que chega Antonio
com as asas dos seus conselhos”


Mulas sem cabeça, mulheres de padre, cobras cascavéis, vaqueiros da morte
assassinos frios, tarados, meliantes , pederastas humilhados.
- E mais! Muito mais!
Cangaceiros, alcoólatras, cafetinas, estupradores.
Formou-se o exército dos deserdados do outro lado do espelho, na outra margem do abismo
Aconselhados para a guerra. Que guerra? Contra quem?
Guerra para destruir o anticristo denominado república
Guerra para eliminar a moeda corrente e restaurar o escambo
Guerra contra a promiscuidade dos padres hereges
Guerra - nunca admitida por quem se fez vencedor - contra o dragão da injustiça, a fera da ignorância, a escuridão da miséria.

Alguma energia celestial atraía forças tão repulsivas? Que ímã seria capaz de unir seres tão díspares como serpentes de muitas cabeças?
A força da palavra! Que transpira amor, revela os segredos do cofre da alma pagã e a faz fiel, crente, obediente, menina de novo!
No deserto humano em que o amor foi banido brotou uma flor: a flor da causa, do motivo da vida.
Que flor era essa, adubada pelos conselhos do mestre Antonio? A flor da justiça, do encontro de contas, da igualdade de todos, por mais estranhas que fossem as pétalas da sua face.
O clamor dos justos retumba pelo ar de formas diversas.
Mas só pode clamar quem tem a alma tocada, despida de mágoas, coberta de luz.
E onde o tempo era seco, fez-se a cacimba molhada;
E onde a vida era a morte, o amor se fez como chama;
E onde era gado tangido, fez-se cavaleiro de fogo.

O cangaço vivia para matar; em Canudos matava-se para não morrer. Eis a diferença.
A flauta encantada do conselheiro punha sentido ao degredo.
Os degredados do amor encontraram colo nas pregações de Antonio.
Os humilhados de sempre sentiram-se exaltados como cúmplices da mesma desgraça;
Os espoliados do sertão esperavam com incontida felicidade o dia do mar civilizado invadir o agreste;
Os encharcados de mar aguardavam numa certeza de pedra a invasão da secura do sertão valente.
E a esperança acendeu o seu pavio de ilusão por onde passou o fio condutor da felicidade, que leva ânimo à vida.
O bicho homem João anão, excluído em qualquer ponto onde se ponha a linha do marco civilizatório, encontrou guarida entre os grandes de Canudos;
O assassino em série Damião, que sangrou a goela de toda uma família, pôs sua alma de joelhos com as famílias de Canudos;
A prostituta Anatercia, concubina de padre, banida pelo destino moral das famílias católicas, foi encontrar seu amor correspondido entre os camaradas de Canudos;
E assim se fizeram gente; e assim se fizeram povo; e assim o sonho foi plantado na caatinga da coragem.

Por caminhos diversos, certos ou errados, brutos ou suaves, o grito dos miseráveis ecoava sonhos, desejos, vontades de toda uma população apartada do mundo.
A república elitista foi abalada pelos conselhos de Antonio, que viraram aço no caldeirão explosivo das almas sedentas;
A esfinge sertaneja enfim foi decifrada; havia um coração pulsando no peito inerte de cada nordestino errante.

“A alma voa valente
mesmo o corpo de joelhos
sempre que chega Antonio
com as asas dos seus conselhos”


Pedro L R Pereira Pedro L R Pereira Autor
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